"Mas 'embaixo' (down), a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinários da cidade. Forma elementar dessa experiência, eles são caminhantes, pedestres, Wandersmänner, cujo corpo obedece os cheios e vazios de um 'texto' urbano que escrevem sem poder lê-lo. Esses praticantes jogam com espaços que não se vêem; têm dele um conhecimento tão cego como no corpo-a-corpo amoroso. Os caminhos que se respondem nesse entrelaçamento, poesias ignoradas de que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros, escapam à legibilidade. Tudo se passa como se uma espécie de cegueira caracterizasse as práticas organizadoras da cidade habitada. As redes dessas escrituras avançando e entrecruzando-se compõem uma história múltipla, sem autor nem espectador, formada em fragmentos de trajetórias e em alterações de espaços: com relação às representações, ela permanece cotidianamente, indefinidamente, outra.
Escapando às totalizações imaginárias do olhar, existe uma estranheza do cotidiano que não vem à superfície, ou cuja superfície é somente um limite avançado, um limite que se destaca sobre o visível. Neste conjunto, eu gostaria de detectar práticas estranhas ao espaço 'geométrico' ou 'geográfico' das construções visuais, panópticas ou teóricas. Essas práticas do espaço remetem a uma forma específica de 'operações' ('maneiras de fazer'), a 'uma outra espacialidade' (uma experiência 'antropológica', poética e mítica do espaço) e a uma mobilidade opaca e cega habitada. Uma cidade transumante, ou metafórica, insinua-se assim no texto claro da cidade planejada e visível."
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[Michel de Certeau, Caminhadas pela cidade, in A invenção do cotidiano, Petrópolis, Vozes, 1994 (pp.171-172)]
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Esse post é para Jana que sei que vai curtir muito!
Comentários
[…] Começar pelo princípio. Começar pelo corpo. Pelo modo como ele vive o espaço e como o espaço vive através do corpo. O corpo é sempre incompleto. A procura é urgente e incessante. Há sempre algo que falta. A arquitetura é, desde os primeiros homens, desde os primeiros corpos, o abrigo. Uma segunda pele. Aos poucos vamos conquistando o nosso mundo. Na relação espaço/corpo existe essa dimensão fundamental: o limite. Tudo se passa como se estivéssemos a criar novas epidermes para o nosso corpo, fazendo com que a última fronteira deixe de ser esta pele para passar a ser uma outra mais distante. A arquitetura é o primeiro gesto com que o homem marca o mundo [...] Pedro Jordão no blog "Epiderme" ...
Logo arquiteto tem a capacidade de emocionar, de afetar este corpo, incorporando objetos que remetam aos diferentes sentidos humanos, criando ambientes ricos em sensações...
Ah Gaia! Saudades ... Janna!